Quando fiz vestibular pela primeira vez, lembro
que tinha uma questão sobre a música “Águas de Março”, de Tom Jobim.
Considerando que fiz vestibular há alguns bons anos, podemos dizer que citar
músicas em uma prova, independentemente da disciplina ou grau, já não é
novidade. Mas até aí, tudo bem.
Outro dia, foi noticiado que a Universidade de
Skidmore, em Nova Iorque, lançou um curso Intitulado "A Sociologia de
Miley Cyrus: Raça, Classe, Género e Meios de Comunicação Social". As aulas
seriam focadas na análise comportamental da artista e em sua “mudança
repentina”. Mas até aí também está tudo bem.
Há algum tempo surgiu, nas redes sociais, uma
passagem de Schopenhauer com uma ideia semelhante ao que diz a letra de
"Beijinho no Ombro". Schopenhauer, filósofo alemão, cuja filosofia influenciou
Eduard
von Hartmann e Friedrich
Nietzsche.
“Desejo à todas inimigas vida longa, pra que elas vejam a
cada dia mais nossa vitória!”
Mas aí pode, já que é Schopenhauer. Ou melhor,
já que não era brasileiro. Que não era mulher. Que não mostrava o corpo. Que
não cantava funk. Que não cantava sobre sua sexualidade.
E então, eis que o professor de uma escola
coloca uma questão em uma prova e o povo quase #vaiprarua de novo. Recomendo a
leitura da reportagem:
A novidade foi citar uma música de um estilo
musical fortemente criticado, por ser considerado de baixo nível (pra não dizer
de pobre, de favelado), com uma letra que traz bordões que estão “na moda” e
interpretada por uma mulher que nem de longe é considerada como modelo de
conduta. Ou seja, a faixa que a elite-patrulha intelectual jamais escutaria.
(Aqui não entro no mérito de sua qualidade enquanto artista,
visto que o intuito com o lançamento da música em questão nem era esse. A ideia
era simplesmente ser engraçada e retratar perfeitamente o comportamento das
pessoas, principalmente nas redes sociais - o que de fato aconteceu e por isso
faz sucesso).
Não sou educador, mas trabalho com a área há
alguns anos. Educar é tarefa absurdamente desafiadora e exige criatividade.
Desculpem os que discordam, mas eu acho que é preciso sim contextualizar todo o
conteúdo que for possível com situações/ícones/referências contemporâneas.
Valesca é um ícone popular, é uma figura carismática das novas gerações. Fomentar
discussões desse tipo para quebrar paradigmas e romper preconceitos é
enriquecer o ensino. E se essa foi a real intensão do professor, então acredito
que precisamos de mais professores assim. Quanto ao título de
"pensadora", o ponto está muito claro na declaração do professor na
reportagem: qualquer pessoa que forme um conceito, pode ser considerado um
pensador. (E ainda vale lembrar a quantidade de antas que temos com esse mesmo
título e fazem muito menos sentido do que a pior das músicas de Valesca).
Mas o fato é que a reação indignada certamente
não é sobre isso. É novamente pela ideia preconceituosa de que a mulher que
trabalha com o corpo é burra e desqualificada, portanto não tem que ser citada
em sala de aula. É a ideia de que o funk é coisa de pobre, de quem mora no
morro, de gente sem cultura, já que pessoas que estudam e são cultas não gostam
de funk. É a velha “elite-patrulha intelectual” que está acima de tudo e todos e por isso pode falar o que presta e o que não
presta. O que é música ou não. Quem é artista e quem não é. É o conhecido trio
que sempre se disfarça de “bom-senso”, o qual está nas opções abaixo. Marque a
opção correta:
A)
Tiro, porrada e bomba;
B)
É pau, é pedra, é o fim do caminho;
C)
Misoginia, machismo e preconceito.
E
não, não é isso que inverte valores e corrompe a sociedade. Esse é o papel da
nossa hipocrisia ao ignorar realidades diferentes da nossa julgando tudo o que
não concordamos como errado e inapropriado.